O despertar da Inteligência Artificial e o que esperar do futuro
Sergio Pena

Sergio Pena

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Estamos vivendo um momento de disrupção tecnológica, no qual a Inteligência Artificial passa por uma grande evolução e deve transformar o mercado de trabalho nas próximas décadas. O momento é tão marcante que já começa a ser comparado com o de grandes revoluções tecnológicas como a criação da internet, da computação em nuvem e da interface gráfica dos computadores.

Em minha vida, vi duas demonstrações de tecnologia que me pareceram revolucionárias. A primeira vez foi em 1980, quando fui apresentado a uma interface gráfica do usuário – a precursora de todos os sistemas operacionais modernos, incluindo o Windows. A segunda grande surpresa, o GPT da OpenAI, chegou no ano passado.

– Bill Gates

Sempre que um avanço tecnológico dessa magnitude acontece, discute-se como o mercado de trabalho e as profissões existentes serão impactados. Os mais extremistas já prevêem uma enorme onda de desemprego no futuro pois acreditam que a Inteligência Artificial (IA) substituirá muitas das profissões atuais. Assim como Conor Friedersdorf na newsletter The Atlantic, há quem já comece a questionar inclusive se estamos diante do primeiro passo para o domínio das máquinas sobre os seres humanos, rs.

Para falar de um assunto tão interessante e complexo, convidamos 2 especialistas no assunto.

O primeiro convidado é Anderson Soares, Coordenador do Centro de Excelência em Inteligência Artificial e professor pesquisador de IA na Universidade Federal de Goiás. Ele começou a se interessar pela IA ainda na época da faculdade de Engenharia e poder ensinar a máquina por meio de programação foi algo que sempre o motivou.

Nosso segundo convidado é Lucas Persona, Chief Digital Officer na CI&T e membro do Conselho de Tecnologia da Forbes. Ele tem estudado o assunto por décadas, implementando algoritmos genéticos cerca de 20 anos atrás e liderando diferentes iniciativas de IA nos últimos 10 anos.

Obrigado por aceitarem o convite e compartilharem seus conhecimentos, é um prazer tê-los conosco!

Sergio: Anderson, para ajudar nossos leitores a entenderem melhor o assunto que iremos discutir, o que é Inteligência Artificial?

Anderson: A definição mais aceita de IA pode ser resumida em soluções computacionais capazes de realizar ações complexas que requerem uma certa “inteligência” da máquina como compreender um texto, uma imagem ou outro tipo de informação. Mas creio que o importante na definição é que IA é uma automação a nível de software. A última revolução industrial nos trouxe automação a nível de hardware e sistemas físicos.

Sergio: Lucas, o que é IA generativa e por que o assunto começou a ganhar tanto destaque recentemente?

Lucas: IA generativa é um termo usado para um conjunto de algoritmos e abordagens dentro do campo de IA para a criação de conteúdo, seja texto, imagem, código-fonte, áudio, vídeo, etc. Os avanços desse conjunto de tecnologias atingiram um novo patamar em 2022 principalmente com lançamentos como DALL-E, ChatGPT, MidJourney, dentre outros, demonstrando o potencial dessas tecnologias de forma acessível para um grande número de pessoas.

Sergio: De todos os usos que você viu da IA até agora, qual você considera o mais impressionante?

Anderson: Para mim o mais impressionante são as IA generativas de imagens. Uma imagem possui informação semântica e espacial extremamente complexa para uma máquina entender e ser capaz de produzir.

Lucas: Acompanhando o progresso em um horizonte de tempo mais amplo (20 anos), para mim o mais impressionante é tanto a velocidade do avanço como a atenção dada para a utilização. A grande atenção dada à IA Generativa nos últimos 12 meses foi de algumas ordens de grandeza comparado com a atenção dada a Redes Neurais no auge daquele avanço alguns anos atrás para desafios de reconhecimento de imagem.

No mundo digital, IA não é uma opção, mas uma questão de sobreviência de produto e serviço.

– Anderson Soares

Sergio: Os usos que temos visto mais recentemente são realmente impressionantes. Como vocês têm usado IA no dia a dia e como tem sido a experiência?

Lucas: IA de forma geral já está inserida no meu dia a dia e de muita gente. Da rota que você faz no Google Maps, aos anúncios que você vê enquanto navega, até as proteções nas transações do cartão de crédito, IA está inserida em um grande conjunto de produtos e serviços. IA Generativa ainda está restrita a ferramentas específicas mas nos próximos 6 a 12 meses vai ser incorporada em vários produtos, como já anunciaram para MS Office 365, Adobe Photoshop e outros.

Anderson: Todos nós usamos IA a quase todo momento em nossas vidas. Está muito presente e as pessoas só não notam isso. Toda vez que você abre o seu e-mail, uma IA organiza os e-mails por níveis de prioridade de acordo com seu histórico comportamental e de forma individualizada, na maioria dos servidores de e-mail. Toda vez que abrimos uma rede social, uma IA escolhe de maneira personalizada quais conteúdos serão exibidos exclusivamente para você. IA tem uma relação direta com produtos digitais. No mundo digital, IA não é uma opção mas uma questão de sobrevivência de produto e serviço. Nos ambientes mais “analógicos” ainda é uma opção.

A História costuma ser ainda nosso principal indicador de impacto futuro e se grandes inovações como a Internet, Eletricidade, Vapor, são algum indicativo, os avanços da IA tendem a ampliar as possibilidades de trabalho.

– Lucas Persona

Sergio: Interessante! Mesmo IA não sendo algo novo, como vocês mencionaram, o avanço atual dela impressiona e os mais apocalípticos já dizem que ela substituirá muitos seres humanos no mercado de trabalho nos próximos anos e a taxa de desemprego baterá recordes. O que vocês pensam sobre isso?

Lucas: A História costuma ser ainda nosso principal indicador de impacto futuro e se grandes inovações (como a Internet, eletricidade, vapor, por exemplo), tendem a ampliar as possibilidades de trabalho. Da mesma maneira como aconteceu durante inovações anteriores, isso não significa que não haverá grandes mudanças e que profissões específicas não serão impactadas, mas que o tamanho do novo mercado final deve ser maior que o atual.

Anderson: Nas últimas revoluções industriais também havia esse temor de que as máquinas iriam substituir os humanos e mais recentemente alguns acreditaram que os computadores e softwares (ainda sem IA) iriam substituir os humanos. O resultado real foi de que de fato houve mudanças relevantes na forma de construir bens e serviços, mas os humanos continuaram contribuindo em tarefas mais nobres ou de supervisão e no final a sociedade ganhou muito com isso.

Por mais que pareça mágico e impressionante, soluções como o ChatGPT fazem uma mimetização de comportamentos de humanos a partir dos dados que são utilizados no treinamento.

– Anderson Soares

Sergio: Continuando nos temas polêmicos, há quem diga que a inteligência artificial passará a ter consciência própria e deixará ser co-pilota para assumir um papel de protagonismo sobre os seres humanos, no melhor estilo da série Humans (AMC). A IA tem potencial para tudo isso em um futuro próximo?

Anderson: No futuro próximo não. Para que algo desse nível possa sequer ser uma possibilidade, precisaríamos entrar na era da computação quântica, por exemplo. Por enquanto existem protótipos muito rudimentares nesse sentido. Por mais que pareça mágico e impressionante, soluções como o ChatGPT fazem uma mimetização de comportamentos de humanos a partir dos dados que são utilizados no treinamento.

Lucas: Se não for polêmica, ninguém falaria a respeito. Eu deixaria essa visão para os estúdios de séries.

Infelizmente, a IA não está a salvo das tendências do preconceito humano. Ele pode ajudar os humanos a tomar decisões mais imparciais, mas apenas se trabalharmos diligentemente para garantir a justiça nos sistemas de IA. Os dados subjacentes, e não o método em si, costumam ser a causa do viés da IA.

– Zoe Larkin

Sergio: Ufa! Existem assuntos polêmicos no que tange o progresso da IA que são mais imediatos e importantes. Como, por exemplo, o tema abordado pelo documentário Coded Bias da Netflix, que discute os vieses racistas e sexistas usados nos modelos atuais de Machine Learning e como isso pode trazer graves consequências para esses grupos minorizados. Como as empresas e pessoas que trabalham com o desenvolvimento de software podem contribuir com a resolução desse problema?

Anderson: A questão dos vieses é realmente um assunto importante. O que acontece é que o cotidiano das pessoas é cheio de vieses e tecnologias como IA acabam desnudando isso. Recentemente li um livro muito interessante chamado “Todo mundo mente”. A grande moral do livro é que as pessoas mentem para si mesmo até quando não é necessário, mas os seus dados não mentem sobre quem é você e o que faz. Ao invés de “botar a culpa na IA”, a sociedade tem a oportunidade de discutir vieses comportamentais dos humanos que seus rastros digitais (dados) estão revelando.

Lucas: Existe um comportamento humano natural de atribuir responsabilidades a terceiros, e nesse caso, IA e “Machine Learning” sendo esse “terceiro” é comum receber as atribuições e responsabilidades para resolver problemas como esse. Eu costumo referir a IA nesses contextos como um espelho. A IA apenas reflete as pessoas, sociedade e ações aceitáveis por elas. Empresas e pessoas que buscam contribuir com a resolução desses problemas precisam focar nas mudanças de comportamento em pessoas e na própria empresa, e a IA irá refletir isso.

Grandes empresas de tecnologia, incluindo Microsoft e Alphabet, estão correndo para adicionar recursos de IA generativa para melhorar chatbots e mecanismos de busca, treinando seus modelos em dados extraídos da Internet para fornecer aos usuários um balcão único para suas consultas. Se essas ferramentas forem alimentadas com dados confidenciais ou privados, será muito difícil apagar as informações.

– Team8, empresa de Venture Capital israelense

Sergio: Recentemente veio à tona o caso de funcionários da Samsung que, ao tentarem resolver problemas do dia a dia corporativo com a ajuda do ChatGPT, acabaram compartilhando dados confidenciais da empresa. A empolgação é grande com o boom da IA generativa e muitos profissionais já estão fazendo uso dela no dia a dia. Quais cuidados essas pessoas e suas empresas podem tomar para continuar usando essas tecnologias sem vazar dados confidenciais?

Lucas: Todas as práticas de segurança de dados continuam a valer no contexto da IA Generativa. Os supostos dados compartilhados pelos funcionários da Samsung poderiam também ter sido compartilhados no passado através de uma busca do Google, ou se fosse código-fonte, numa busca no Stack Overflow. Empresas têm a oportunidade de se antecipar e fornecer meios seguros na utilização de soluções de IA Generativa, compatível com suas políticas de segurança, para capturar a eficiência que essas soluções permitem juntamente com a redução do risco de exposição de dados.

Anderson: No mundo digital tem um velho ditado: “Se você não está pagando pelo produto, você é o produto”. Depois do Google, diversas técnicas computacionais inteligentes de busca, que inclusive são melhores que as do Google, foram desenvolvidas. Mas ninguém tem os dados de busca e dos resultados que eles têm, que foram acumulados de forma cada vez maior. No caso do ChatGPT, criou-se o maior banco de dados de texto da história da humanidade e toda vez que alguém pergunta onde e como obteram isso a OpenAI desconversa e empurra o problema para o futuro. Você precisa partir do pressuposto de que o que você coloca na internet poderá ser eternizado e publicizado com ou sem o seu consentimento.

Sergio: Chegou a hora mais bacana da entrevista, a hora de prever o futuro, rs. Quais profissões vocês imaginam que serão criadas no mercado de desenvolvimento de produtos digitais nos próximos 10 anos por conta desse “despertar da inteligência artificial”?

Lucas: Acredito que prever tipos de trabalho é melhor do que tentar prever “nomes” de profissões. Partindo do princípio que IA Generativa reduz em algumas ordens de magnitude o custo de execução do processo criativo o cenário mais potencial é de um mundo onde qualquer imaginação pode ser instantaneamente “materializada”.

Nesse cenário, os principais tipos de trabalho vão se concentrar entre:

  • Aqueles que vão definir intenção e objetivos, com métodos de validar resultados o que é um papel muito ligado a parte estratégica do Gerente de Produto de hoje;
  • Aqueles que vão orquestrar a execução de múltiplas AI Generativas diferentes e inputs/validações de pessoas;
  • Os que vão fazer a curadoria, ensinar, analisar resultados e realimentar IA Generativas com base na intenção e objetivos iniciais.

Anderson: Nós já temos uma nova profissão muito curiosa chamada “Engenheiro de prompt” na IA Generativa. Você precisa fazer a “pergunta correta para a IA” como por exemplo ao ChatGPT (texto) ou ao DALL-E (imagem). Pelo que tenho presenciado, esse engenheiro de prompt precisa entender minimamente do domínio de aplicação que a IA generativa está sendo usada, não é um profissional de IA ou da computação. Mas creio que é só o começo. Mais do que novas profissões, o principal é que os profissionais atuais vão ter novas ferramentas. Assim como é difícil imaginar nossas profissões (professor, reporter, gerente, etc.) sem o uso de computador, softwares, e-mails, editores de textos, novas ferramentas vão surgir e terão estágios de adoção. Veremos ferramentas que auxiliam nossa capacidade criativa e cognitiva e isso é um nível acima do operacional que estávamos acostumados com os softwares tradicionais.

Sergio: Que recado você daria para quem ainda não começou a utilizar a inteligência artificial no seu dia a dia? Seja por desinteresse ou por não acreditar no seu potencial.

Anderson: Nós seres humanos temos uma certa resistência natural contra novidades. Novidades exigem esforços e investimentos de tempo. Na medida do possível, precisamos no mínimo buscar um entendimento do que está acontecendo de novo sob pena de correr o risco de ser aquela pessoa que prefere usar uma máquina de datilografar ao invés de um editor de texto no computador.

Sergio: E para quem está preocupado com o avanço da tecnologia, algum conselho?

Lucas: A melhor maneira de direcionar um rio é abrir canais, não bloquear o fluxo. A IA Generativa, como um novo rio que está se formando, vai se beneficiar de pessoas preocupadas com a direção e avanços da tecnologia ajudando a definir por qual caminho esse avanço vai fluir. Participe e ajude a definir essa direção.

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